Armadilhas do Liberalismo
Capítulo do livro Stokely Speaks:
From Black Power to Pan-Africanism (1971).
Discurso realizado em 1969.
Tradução por Guilherme Henrique.
Sempre que se escreve sobre um problema nos Estados Unidos, especialmente no que diz respeito à atmosfera racial, o problema sobre o qual se escreve geralmente é o dos negros, que são extremistas, irresponsáveis ou ideologicamente ingênuos.
O que queremos fazer aqui é falar da sociedade branca, e do segmento liberal da sociedade branca, porque queremos provar as armadilhas do liberalismo, ou seja, as armadilhas dos liberais em seu pensamento político.
Sempre que artigos são escritos, sempre que discursos políticos são feitos, ou sempre que são feitas análises sobre uma situação, supõe-se que certas pessoas de um grupo, seja de esquerda ou de direita, ricos ou pobres, brancos ou negros, estão causando polarização. O fato é que as condições causam polarização e que certas pessoas podem atuar como catalisadores para acelerar a polarização; por exemplo, Rap Brown ou Huey Newton podem ser um catalisador para acelerar a polarização de negros contra brancos nos Estados Unidos, mas as condições já estão lá. [1] [2] George Wallace pode acelerar a polarização dos brancos contra os negros na América, mas, novamente, as condições já estão lá. [3]
Muitas pessoas querem saber por que, de todo o segmento branco da sociedade, queremos criticar os liberais. Temos que criticá-los porque eles representam a ligação entre os dois grupos, entre o oprimido e o opressor. O liberal tenta se tornar um árbitro, mas é incapaz de resolver os problemas. Ele promete ao opressor que pode manter os oprimidos sob controle; que ele irá impedi-los de se tornarem ilegais (neste caso, ilegal significa violento). Ao mesmo tempo, ele promete aos oprimidos que poderá aliviar seu sofrimento – no devido tempo. Historicamente, é claro, sabemos que isso é impossível, e nossa era não escapará da história.
A questão mais perturbadora para o liberal é a questão da violência. A reação inicial do liberal à violência é tentar convencer os oprimidos de que a violência é uma tática incorreta, que a violência não funciona, que a violência nunca realiza nada. Os europeus tomaram a América através da violência e através da violência estabeleceram o país mais poderoso do mundo. Através da violência eles mantêm o país mais poderoso do mundo. É absolutamente absurdo alguém dizer que a violência nunca realiza nada.
Hoje o poder é definido pela quantidade de violência que se pode trazer contra o inimigo – é assim que você decide o quão poderoso é um país; o poder é definido não pelo número de pessoas que vivem em um país, não é baseado na quantidade de recursos que se encontram naquele país, não é baseado na boa vontade dos líderes ou da maioria desse povo. Quando se fala de um país poderoso, fala-se precisamente da quantidade de violência que esse país pode acumular sobre seu inimigo. Devemos ser claros em nossas mentes sobre isso. A Rússia é um país poderoso, não porque existem tantos milhões de russos, mas porque a Rússia tem grande força atômica, grande poder atômico, o que, claro, é violência. A América pode desencadear uma quantidade infinita de violência, e essa é a única maneira de se considerar a América poderosa. Ninguém considera o Vietnã poderoso, porque o Vietnã não pode desencadear a mesma quantidade de violência. No entanto, se alguém quiser definir o poder como a habilidade de executa-la, parece-me que o Vietnã é muito mais poderoso do que os Estados Unidos. Mas como hoje fomos condicionados pelo pensamento ocidental a equiparar poder com violência, tendemos a fazer isso o tempo todo, exceto quando os oprimidos começam a igualar poder com violência – então isso se torna uma equação “incorreta”.
A maioria das sociedades do Ocidente não se opõe à violência. O opressor só se opõe à violência quando o oprimido fala em usar a violência contra o opressor. Então, a questão da violência é levantada como o meio incorreto para atingir os fins. Testemunhe, por exemplo, que a Grã-Bretanha, a França e os Estados Unidos sempre armaram negros para lutar contra seus inimigos por eles. A França armou os senegaleses na Segunda Guerra Mundial, a Grã-Bretanha, claro, armou a África e as Índias Ocidentais, e os Estados Unidos sempre armaram os africanos que vivem nos Estados Unidos. Mas isso é apenas para lutar contra seu inimigo, e a questão da violência nunca é levantada. A única vez que os Estados Unidos, a Inglaterra ou a França se preocuparão com a questão da violência é quando as pessoas que eles armaram para matar seus inimigos pegarem essas armas contra eles. Para outro exemplo, praticamente todos os países do Ocidente hoje estão dando armas para a Nigéria ou para Biafra. Eles não se importam em dar essas armas a essas pessoas, desde que as usem para matar uns aos outros, mas nunca lhes darão armas para matar outro homem branco ou lutar contra outro país branco.
A forma como o opressor tenta impedir o oprimido de usar a violência como meio de alcançar a libertação é levantar questões éticas ou morais sobre a violência. Quero afirmar enfaticamente aqui que a violência em qualquer sociedade não é moral nem ética. Não está certo nem está errado. É simplesmente uma questão de quem tem o poder de legalizar a violência.
Não se trata de saber se é certo matar ou é errado matar; a matança continua. Deixe-me dar um exemplo: se eu estivesse no Vietnã, se eu matasse trinta amarelos que me foram apontados por brancos americanos como meu inimigo, eu receberia uma medalha. Eu me tornaria um herói. Eu teria matado o inimigo da América – mas o inimigo da América não é meu inimigo. Se eu matasse trinta policiais brancos em Washington, D.C., que estão brutalizando meu povo e que são meus inimigos, eu pegaria a cadeira elétrica. É simplesmente uma questão de quem tem o poder de legalizar a violência. No Vietnã, nossa violência é legalizada pela América branca. Em Washington, D.C., minha violência não é legalizada, porque os africanos que vivem em Washington, D.C., não têm o poder de legalizar sua violência.
Usei esse exemplo apenas para apontar que o opressor nunca realmente faz um julgamento ético ou moral sobre a violência, exceto quando o oprimido pega em armas contra o opressor. Para o opressor, a violência é simplesmente a coisa mais conveniente a fazer.
Não é violento uma criança ir dormir com fome no país mais rico do mundo? Acho isso violento. Mas esse tipo de violência é tão institucionalizado que se torna parte do nosso modo de vida. Não só aceitamos a pobreza, como até a achamos normal. E isso mais uma vez porque o opressor faz de sua violência uma parte da sociedade em funcionamento. Mas a violência dos oprimidos se torna disruptiva. É perturbador para os círculos dominantes de uma determinada sociedade. E por ser disruptivo é, portanto, muito fácil de reconhecer e, portanto, torna-se alvo de todos aqueles que de fato não querem mudar a sociedade. O que queremos fazer por nosso povo, o oprimido, é começar a legitimar a violência em suas mentes. Para que para nós a violência contra o opressor seja conveniente. Isso é muito importante, porque todos nós sofremos uma lavagem cerebral para aceitar questões de julgamento moral quando a violência é usada contra o opressor.
Se eu matar no Vietnã, posso sair em liberdade; foi legalizado para mim. Não foi legitimado em minha mente. Devo legitimá-lo em minha própria mente, e mesmo que seja legal, nunca o poderei legitimar em minha própria mente. Há muitas pessoas que voltam do Vietnã, que mataram onde matar foi legalizado, mas que ainda têm problemas psicológicos pelo fato de terem matado. Devemos entender, no entanto, que legitimar o ato de matar na mente de alguém não o torna legal. Por exemplo, eu legitimei completamente em minha mente o assassinato de policiais brancos que aterrorizam comunidades negras. No entanto, se eu for pego matando um policial branco, terei que ir para a cadeia, porque ainda não tenho o poder de legalizar esse tipo de assassinato. Os oprimidos devem começar a legitimar esse tipo de violência na mente de nosso povo, mesmo que seja ilegal neste momento, e temos que continuar lutando todas as chances que temos para atingir esse fim.
Agora, eu acho que o maior problema com o liberal branco nos Estados Unidos, e talvez o liberal em todo o mundo, é que sua tarefa principal é parar o confronto, parar os conflitos, não corrigir as queixas, mas parar o confronto. E isso está muito claro, deve ficar muito, muito claro em todas as nossas mentes. Porque uma vez que vemos qual é a principal tarefa do liberal, então podemos ver a necessidade de não perder tempo com ele. Seu papel principal é parar o confronto. Porque o liberal assume a priori que um confronto não vai resolver o problema. Isso, é claro, é uma suposição incorreta. Nós sabemos isso.
Não precisamos perder tempo mostrando que essa suposição dos liberais é claramente ridícula. Acho que a história mostrou que o confronto em muitos casos resolveu muitos problemas – veja a revolução russa, a revolução cubana, a revolução chinesa. Em muitos casos, parar o confronto realmente significa prolongar o sofrimento.
O liberal está tão preocupado em parar o confronto que geralmente se vê defendendo e clamando por lei e ordem, a lei e a ordem do opressor. O confronto perturbaria o bom funcionamento da sociedade e, assim, a política do liberal o leva a uma posição em que ele se encontra politicamente alinhado com o opressor e não com o oprimido.
A razão pela qual o liberal procura parar o confronto – e esta é a segunda armadilha do liberalismo – é que seu papel, independentemente do que ele diz, é realmente manter o status quo, ao invés de mudá-lo. Ele desfruta da estabilidade econômica do status quo e, se lutar por mudanças, está arriscando sua estabilidade econômica. O que o liberal está realmente dizendo é que ele espera trazer justiça e estabilidade econômica para todos por meio de reformas, que de alguma forma a sociedade será capaz de continuar se expandindo sem redistribuir a riqueza.
Isso leva à terceira armadilha do liberal. O liberal tem medo de alienar alguém e, portanto, é incapaz de apresentar qualquer alternativa clara.
Veja a última campanha presidencial nos Estados Unidos entre Nixon, Wallace e Humphrey. Nixon e Humphrey, porque tentam se considerar uma espécie de liberais, não ofereceram alternativas. Mas Wallace o fez, ele ofereceu alternativas claras. Como Wallace não tinha medo de alienar, ele não tinha medo de apontar quem havia causado erros no passado e quem deveria ser punido. Os liberais têm medo de alienar qualquer um na sociedade. Eles pintam uma imagem tão rósea da sociedade e nos dizem que, embora as coisas tenham sido ruins no passado, de alguma forma elas podem se tornar boas no futuro sem reestruturar a sociedade.
O que o liberal realmente quer é provocar mudanças que não ponham em perigo de forma alguma sua posição. O liberal diz: “É um fato que você é pobre, e é um fato que algumas pessoas são ricas; mas podemos torná-lo rico sem afetar as pessoas que são ricas.” Não sei como os pobres conseguirão segurança econômica sem afetar os ricos de um determinado país, a menos que se explore outros povos. Acho que se seguíssemos a lógica do liberal até o fim, descobriríamos que tudo o que podemos tirar dela é que para que uma sociedade se torne igualitária devemos começar a explorar os outros povos.
Quarto, não acho que os liberais entendam a diferença entre influência e poder, e os liberais ficam confusos buscando influência em vez de poder. Os conservadores da ala direita, ou os fascistas, entendem o poder, porém, e se movem para consolidar o poder enquanto o liberal pressiona por influência.
Examinemos o período anterior à legislação de direitos civis nos Estados Unidos. Houve uma coalizão do movimento trabalhista, do movimento estudantil e da igreja para a aprovação de certas leis de direitos civis; embora esses grupos formassem uma ampla coalizão liberal e fossem capazes de exercer sua influência para aprovar determinada legislação, eles não tinham o poder de implementar a legislação uma vez que se tornasse lei. Depois de aprovarem determinada legislação, eles tiveram que pedir às pessoas com quem estavam lutando para implementar exatamente as coisas que eles não queriam implementar no passado. O liberal luta pela influência para provocar a mudança, não pelo poder de implementar a mudança. Se alguém realmente quer mudar uma sociedade, não luta para influenciar a mudança e depois deixar a mudança para outra pessoa fazer. Se os liberais são sérios, devem lutar pelo poder e não pela influência.
Essas armadilhas estão presentes em sua política porque o liberal faz parte do opressor. Ele gosta do status quo; embora ele próprio possa não estar oprimindo ativamente outras pessoas, ele desfruta dos frutos dessa opressão. E ele retoricamente tenta afirmar que está desgostoso com o sistema como ele é.
Enquanto o liberal faz parte do opressor, ele é o segmento mais impotente dentro desse grupo. Portanto, quando ele procura falar sobre mudança, ele sempre confronta o oprimido e não o opressor. Ele não procura influenciar o opressor, ele procura influenciar o oprimido. Ele diz aos oprimidos, uma e outra vez: “Você não precisa de armas, você está se movendo muito rápido, você é muito radical, você é muito extremo”. Ele nunca diz ao opressor: “Você é muito extremista no tratamento dos oprimidos”, porque ele é impotente entre os opressores, mesmo que faça parte desse grupo; mas ele tem influência, ou, pelo menos, é mais poderoso que os oprimidos, e goza desse poder sempre advertindo, condenando ou certamente tentando dirigir e liderar os movimentos dos oprimidos.
Para evitar que os oprimidos descubram suas armadilhas, o liberal fala de humanismo. Ele fala sobre liberdade individual, sobre relacionamentos individuais. Não se pode falar de idealismo humano em uma sociedade dirigida por fascistas. Se alguém quer uma sociedade que seja de fato humanista, é preciso garantir que a entidade política, o estado político, seja aquela que permitirá o humanismo. E assim, se alguém realmente quer um estado onde o idealismo humano seja uma realidade, tem que ser capaz de controlar o estado político. O que o liberal tem que fazer é lutar pelo poder, ir pelo estado político e então, uma vez feito isso, o liberal poderá assegurar o tipo de idealismo humano na sociedade de que sempre fala.
Por causa das razões acima, porque o liberal é incapaz de realizar o idealismo humano que ele prega, o que geralmente acontece é que o oprimido com quem ele estava falando finalmente fica totalmente desgostoso com o liberal e começa a pensar que o liberal foi enviado aos oprimidos para desviar sua luta, para mantê-los confusos para que o opressor possa continuar a governá-los. Então, quer o liberal goste ou não, ele se vê sendo jogado, pelos oprimidos, com o opressor – é claro que ele faz parte desse grupo. O confronto final, quando ocorrer, incluirá, é claro, o liberal do lado do opressor. Portanto, se o oprimido realmente quer uma mudança revolucionária, ele não tem escolha a não ser livrar-se daqueles liberais em sua posição.
Notas:
(1) Rap Brown foi o quinto presidente do Student Nonviolent Coordinating Committee na década de 1960. Ele era conhecido pela frase “a violência é tão americana quanto a torta de cereja”.
(2) Huey Newton foi cofundador do Partido dos Panteras Negras para Autodefesa, um partido político marxista-leninista revolucionário que começou em Oakland, Califórnia.
(3) George Wallace serviu como o 45º governador do Alabama por quatro mandatos, ele se opôs à dessegregação e apoiou as políticas de Jim Crow. Ele era conhecido pela frase “segregação agora, segregação amanhã, segregação para sempre”.
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